CAPÍTULO UM
Dona
Francisca, moradora da casa mais antiga da praia do Estaleirinho, contava essa
história com tanta frequência e convicção que ninguém jamais ousou duvidar de
seu testemunho. Seu prazer em relembrar os misteriosos acontecimentos daquela
noite era tão grande, que se permitia acrescentar um e outro detalhe, necessitando
a história de uma boa meia hora para ser relatada, isso se não fosse
interrompida com questionamentos.
Naquele
final de tarde de outubro, estava na varanda de sua casa, de onde podia ver o
mar. Fazia uma colagem utilizando garrafas pet
com decoração de conchinhas e escamas de peixe, delicadamente dispostas em
formato de flor. Artesã de muita habilidade, suas peças eram as mais disputadas
pelos turistas no Armazém da Arte, na Barra Sul.
O
sol se pôs exatamente às 18h12, horário que marcava o relógio pendurado na
parede da sala. A falta de iluminação interrompeu o trabalho e seus olhos se
voltaram para admirar a praia. Uma lua enorme começou a emergir no horizonte.
Desviou seu olhar da paisagem por um momento, e isso ela repetia várias vezes,
dando a ênfase necessária ao diminuto espaço de tempo que levou para apanhar o
tubo de cola caído no chão.
Quando
voltou sua atenção ao mar, viu um homem pulando as ondas e saindo da água. Ele
olhou para os lados e começou a caminhar pela areia em direção à sua casa.
Sentiu
um arrepio com a iminente aproximação daquele estranho. Estava sozinha. A filha
mais nova estudava à noite. Os outros dois filhos moravam na capital, e o
marido, para sua tristeza, já havia falecido. Levantou-se correndo para acender
a luz da varanda. Um recurso de segurança, já que sempre se tem a sensação de
que coisas más têm menos probabilidade de acontecer em locais iluminados. Com a
pressa, derrubou no chão as conchinhas, que se espalharam por toda parte.
Pensou
em correr e se trancar na casa, mas não teria efeito prático algum, já que
todas as janelas estavam abertas e, se a intenção dessa pessoa fosse roubo ou
coisa pior, de nada adiantaria o seu gesto de hostilidade.
O
homem já se preparava para atravessar a restinga que separava a varanda da
areia. Era alto e magro, tinha cabelos loiros e barba ruiva, vestia uma espécie
de guarda-pó branco, que surpreendentemente não estava molhado, apesar de tê-lo
visto sair do mar havia poucos minutos. Segurava o que parecia ser uma bengala,
que depois percebeu se tratar de uma vareta de madeira.
Chegando
mais perto, notou que aparentava ter entre 30 e 35 anos, semblante sério, mas
com um olhar penetrante. Parou a cerca de dois metros de distância e iniciou
uma conversa.
–
Boa noite, Dona Francisca!
–
Boa noite – respondeu, por impulso. – Quem é o senhor e de onde me conhece? – perguntou
já um pouco mais relaxada; afinal nunca tinha ouvido falar de um ladrão que
iniciasse a ação criminosa cumprimentando a vítima e chamando-a pelo nome.
–
Muitos se referem a mim como Ambientalista. Quanto a conhecê-la, todo mundo
aqui na região conhece a senhora como uma das moradoras mais antigas. O fato é
que acabei de chegar e ainda não sei onde vou me instalar. Gostaria de
pedir-lhe um favor.
–
Se estiver a meu alcance – respondeu a mulher, sentindo um misto de curiosidade
e encantamento por aquela figura singular.
–
Preciso que guarde esta caixa para mim.
Dona
Francisca viu o objeto nas mãos do homem, mas não havia notado que carregava
algo além da vareta quando saiu do mar.
–
É só isso que o senhor precisa? Que eu guarde essa caixa? – perguntou,
desconfiada.
–
Só isso mesmo, senhora.
Dona
Francisca hesitou. Um completo estranho que sabia seu nome e que surgiu do
nada, pedindo para guardar algo. Respirou fundo. Melhor seria não contrariá-lo.
Que mal poderia haver em fazer esse favor ao homem? – perguntou-se.
–
Posso sim – respondeu, e já esticou a mão para pegar a caixa. Parecia ser feita
de aço, porém era leve e não havia um fecho ou outra coisa que desse para
perceber como poderia ser aberta.
Assim
que entregou o objeto, o Ambientalista agradeceu fazendo uma reverência com a
cabeça e virou-se, caminhando em direção ao mar. De repente parou e começou a
riscar a areia com a vareta que carregava. Depois seguiu em sentido norte, até
próximo das pedras, de onde não pôde ser mais visto.
Intrigada,
Dona Francisca foi ver o que o homem havia rabiscado na areia. Ele havia
escrito uma única palavra: MISSÃO.
Um
vento forte começou a soprar trazendo nuvens que logo ocultaram a visão da lua
cheia.
Dona
Francisca voltou para casa, trancou portas e janelas e ficou contemplando a
estranha caixa sobre a mesa, pensativa.
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